Uma vermelha
I
Caminho na rua meio perdido meio fumaça meio riso, a garganta arde, engole uma mistura de brio fácil e desconfiança no inevitável. Rachel chegaria, viria buscar o que ainda resta de perdão em mim; e até agora ela não apareceu. Tampouco esperarei que se decida. É óbvio que amanhã será a mesma.
Costumo parar em frente a placas, ou nas praças, conquanto haja e não haja pessoas ao redor. “Não haja” porque ninguém vai ficar parado, pensando e fazendo neblina das dúvidas às quatro da tarde numa segunda - não, terça-feira.
É quando reflito sobre essas esposas que poderiam ser mães de gênios, dum acrobata, dum ministro, dum assassino de gente famosa, ou a própria gente famosa. Nada a ver com os meus microscópicos bichinhos rabudos que - a pretensão! - seriam futuros heróis desse porte. Vem das mães.
Uma daquelas mulheres que destroem as atmosferas, eles conversando e folheando revistas pornô durante um Esportiva de Taguatinguetá versus Estrela da Saúde, domingo de sol com cerveja, ela aparece, todos olham, e a agressividade se transforma. Feia, não feia, sorria ou deteste ouvir palavrão e ver jogo da segunda divisão.
Não por ela não gostar, ou pelo mau humor biologicamente legitimado de mês em mês, mas porque está ainda atarefada, querendo terminar isso ou resolver aquilo ou repensar aquilo outro: postura de contrato, muito importante para mim, o da produtividade extrema, até nociva, superior e incontível, nos projetos que escolheu e decidiu cumprir. Trato que, para ser franco, não levo muito a sério.
Lembro de ter parado em frente a uma placa qualquer, vendo nomes de rua, imaginando como seria possível evitar, algum dia, que nomes de rua representem coisas tão esquisitas.
Caminho, faz esse sol dos dias em que a mãe do gênio surge no banheiro, sorrindo como se renascesse princesa de algum sarcófago cotidiano, empoeirada de luzes, ginga e xinga e amaldiçôo poder apenas acompanhá-las indo, do quarto, passando salas de minha expectativa e então me contornam, sumindo numa escuridão que deixa tudo besta Caminho, faz esse sol dos dias em que a mãe do gênio surge no banheiro, sorrindo como se renascesse princesa de algum sarcófago cotidiano, empoeirada de luzes, ginga e xinga e amaldiçôo poder apenas acompanhá-las indo, do quarto, passando salas de minha expectativa e então me contornam, sumindo numa escuridão que deixa tudo besta por um instante.
- Quer fumar? - sorri quase cantando, enternece, assusta e acabo negando.
A mãe do gênio senta-se, flutuante, de pernas nuas cruzadas por baixo da toalha, deixando, como que abandonado, um braço ao lado do corpo. Dedilha suas músicas inacessíveis na coxa, passando para dentro e através da TV. É quem segura os cabelos numa calma que parece desilusão para, quando minha vontade surgir, ela virar, súbita, estendendo o cigarro.
Aquela expectativa. Agora não sinto mais a obra e o peso, a orla, da saudade. Sorrio miseravelmente no repentino esquecimento do “depois de hoje”, pensando em algo como uma fratura boquiaberta sem recheio.
Ela não conseguiu, enfim. Desisti de ouvir com calma para ser ouvido em silêncio... não me revolto, não reviro, mas procuro um outro cigarro.
Claro que faz falta. “Faço falta pra você?” Diria não?
Outra noite à espera. Muito tempo passado. Espera! Desisti tarde, por Rachel e seus amigos filhos geniais. Talvez as mães, mas uma garota, leve demais, movimentos e sonhos desprovidos de qualquer rouquidão?; barracas, óculos escuros, gargalhadas na praia. É o trato, a produtividade. Ou seja, nada.
Outro dia errado, pênsil, e vagava ainda transpirando, embora observasse, complacente, o desmilingüir do sol. Decido virar à esquerda, mentalizando e beirando mecanicidade, penso na próxima à direita.
Passam dois senhores de sacolas penduradas, pisando firme, cabisbaixos e rápidos, um de boné. E já me resigno ao boné‚ vermelho na foto, o sorriso dela que parece hoje bonito e falso; naquela época era simples achá-lo maravilhoso. “Álvaro! Álvaro!”, ela berrava, corcunda de gargalhadas, nos perdíamos pela multidão, cumprimentávamos as pessoas, eu preocupado em me esconder sutilmente por entre os corpos, os casais, sorrindo entre nós, cúmplices eu e eles e ela, que na verdade beijava alguém quando eu não via.
Os dois juntos, esfregando as frontes, balançando à música; e esperei mais essa tarde, outra noite, e escrevo-a, outro dia cansado, rastejante, e novamente os olhos grandes, pretos, a testa clara e duas sobrancelhas, par e ímpar, de questionamento fulverino. E o boné, vermelho na foto, nós abraçados e perdidos.
Um comentário:
bom comeco
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